Dia 10, Sábado, continuação
Enquanto esperava pela sua chegada, observei Lúcifer, o meu gato negro de olhos azuis a passar por entre os meus pés enquanto ronronava, dirigindo-se, posteriormente, para o centro da casa-de-banho, onde se encontravam os dois cadáveres encharcados no próprio sangue. Lentamente, Lúcifer recolheu o seu corpo e as patas, de modo a parecer-se uma pequena bola negra, através de uma visão de retaguarda. Muito junto ao sangue que tinha parado de escorrer, mas ainda fresco, Lúcifer esticou a sua língua e começou a beber o líquido vermelho. Ingeria pequenas doses do mesmo, dado o seu tamanho reduzido.
Num mundo repleto de pestes conhecidas como "humanos", considerei, desde sempre, os animais como os meus melhores amigos. Não só pelos afetos que por eles todos nós possuímos, mas também pela facilidade que eu teria em aniquilar um: não falam, portanto, não gritam nem pedem ajuda, em redor deles somos sempre os gigantes, daí a facilidade neste exercício. Não resmungam quando têm fome ou sede, logo que podem morrer famintos sem nunca ninguém ter culpa. E o melhor de tudo, mas que não se enquadra neste tópico, é que, mudos como são, nunca poderiam denunciar aos outros as atrocidades que apenas um só ser humano é capaz de realizar. Observam-nos como espiões, mas não entendem o que é considerado "mórbido" para uma pessoa normal. Permanecem calados, mesmo que queiram reportar alguma coisa, basta dar-lhes comida ou atirar um osso de borracha ao ar para os calar... não só na vocalização de onomatopeias, como também mentalmente.
No entanto, eu nunca matei um único animal. Nem cães, gatos, ratos ou pássaros. São presas demasiado fáceis. Prefiro lutar contra um humano e sair como vencedor. Passar por despercebido, agir na calada e pensar no próximo plano/vítima são os meus passatempos favoritos. Exigem inteligência, um bom uso da lógica, por parte do cérebro humano. Apenas os cobardes matam animais: pobres e criaturas inocentes sem nenhum mecanismo defensivo...
Toda a minha família estava impugnada quanto ao nome proposto por mim ao gato. Receberam-no como uma "palavra satânica" ou um "nome proibido". É o que dá viver junto de uma família religiosa. Totalmente tapados da realidade, nem sequer sabem o significado do nome "Lúcifer", que tanto desdenham. Ironicamente, é uma força que os religiosos buscam: A Luz. "Lúcifer" significa "Iluminado". Está mais coberto pela luz um ser encarado como demoníaco do que os membros da minha pobre família. A única luz que conseguiram visualizar foi aquela, que se encontra ao fundo do túnel. Porque por toda a sua vida, ofuscada pela religião, tornaram-se nuns merdas, seguidores de Deus, cegos quando à vida real, cegos quanto às necessidades de um filho...
Repentinamente, ouvi a campainha a tocar. Ao olhar pelo pequeno vidro que me permitia observar o exterior, vi que quem estava do outro lado era o meu pai. Eu bem podia abrir a porta e matá-lo no momento, mas não seria uma boa alternativa para um morador de uma vivenda, sabendo que qualquer um que passasse por aqui e visse o assassinato denunciar-me-ia imediatamente. A minha única opção era deixá-lo entrar e exterminá-lo aqui dentro. Mas isto não correu como planeado...
Assim que abri a porta, o meu pai correu diretamente para a casa-de-banho e viu...
o assassinato que cometi... mas o pior é que eu tinha deixado o facão junto aos cadáveres e não sabia que outro objeto poderia usar para acabar com a minha família de vez. E lembrei-me que a casa-de-banho tinha janelas para o exterior. Julgo que o meu pai tenha visto a divisão coberta de sangue quando passou por ela. Foi então que decidi baixar a sua guarda.
Eu disse que um homem encapuçado tinha entrado em casa enquanto eu fazia o jantar, acrescentando que o observei de esguelha, não podendo captar muitos pormenores da sua aparência física. Aleguei que tinha telefonado à polícia para vir cá a casa.
Ele estava irrequieto e com o rosto lavado em lágrimas. Nem sequer chegou a perguntar pela mãe. Também não lhe disse que tinha ouvido gritos da Beatriz, aliás, eu penso que não observou o cadáver por tempo suficiente para entender que tinha sido esquartejada e caso estivesse viva, fartar-se-ia de gritar de dor durante a retalhadura da sua carne.
Quando finalmente caminhou para fora da área adjacente à casa-de-banho, tive a oportunidade perfeita para pegar no facão e espetá-lo na cabeça ou no coração, de modo a terminar com tudo de vez. Mas quando entrei na divisão, não vi o objeto em lado nenhum. E quando percebi o que poderia ter acontecido, já era tarde de mais.
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